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Revista GC - Ed.83 - Setembro 2017
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Entrevista

Eletrificação de ferrovias de carga: o Brasil diante de uma escolha histórica

Não há dúvida de que as ferrovias são a melhor solução para o transporte de longa distância de grandes volumes em função da sua elevada capacidade de carga, superior eficiência energética, maior segurança e baixo custo de manutenção. Em nosso país, as cargas típicas transportadas pelas vias férreas são minério de ferro, soja, milho, farelos, óleo diesel, celulose e produtos siderúrgicos, ou seja, a quase totalidade de nossas exportações de commodities. Essa importância assume novos contornos nesse momento em que o Brasil bate sucessivos recordes na produção de commodities agrícolas e quando assistimos o avançar das fronteiras de produção do agronegócio sobre regiões onde é marcante a ausência de infraestrutura de transporte e logística.

O simples fato do surgimento da alternativa ferroviária costuma provocar alterações profundas até mesmo nas articulações produtivas, com impactos extraordinários no desenvolvimento regional. Imagine, então, o poder de transformação e de indução de desenvolvimento que teria não só a expansão da nossa malha ferroviária – estimada em 28 mil quilô


Não há dúvida de que as ferrovias são a melhor solução para o transporte de longa distância de grandes volumes em função da sua elevada capacidade de carga, superior eficiência energética, maior segurança e baixo custo de manutenção. Em nosso país, as cargas típicas transportadas pelas vias férreas são minério de ferro, soja, milho, farelos, óleo diesel, celulose e produtos siderúrgicos, ou seja, a quase totalidade de nossas exportações de commodities. Essa importância assume novos contornos nesse momento em que o Brasil bate sucessivos recordes na produção de commodities agrícolas e quando assistimos o avançar das fronteiras de produção do agronegócio sobre regiões onde é marcante a ausência de infraestrutura de transporte e logística.

O simples fato do surgimento da alternativa ferroviária costuma provocar alterações profundas até mesmo nas articulações produtivas, com impactos extraordinários no desenvolvimento regional. Imagine, então, o poder de transformação e de indução de desenvolvimento que teria não só a expansão da nossa malha ferroviária – estimada em 28 mil quilômetros, a maior da América Latina – mas a sua modernização, através da eletrificação das linhas de carga.

Trata-se de uma questão polêmica, que divide os especialistas em transporte ferroviário, no que diz respeito aos custos adicionais de implantação e seus benefícios. Para se chegar a uma conclusão, é preciso avaliar o contexto do empreendimento. Onde essa ferrovia será construída? Se for em uma região pouco desenvolvida, escolher um sistema eletrificado pode ser melhor? A usina que vai alimentar a ferrovia, por exemplo, também pode incentivar a abertura de uma fábrica, com a energia excedente? O que isso poderia representar em termos de geração de empregos e desenvolvimento regional? Quem ficaria responsável pelos investimentos no sistema eletrificado?

A Siemens entrou de cabeça nesta discussão, em um momento oportuno. A Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) estima em R$ 91 bilhões os investimentos esperados em novos empreendimentos ferroviários até o ano de 2038, baseados em modelos de parceria entre os setores público e privado.  Para Ricardo Kenzo Motomatsu, gerente de Desenvolvimento de Novos Negócios da Siemens, este é o momento de repensarmos o modelo que até aqui prevalece, avaliando todas as potencialidades da geração de energia limpa que poderiam se articular com o novo modelo do modal ferroviário.  proposto. Para ele, é preciso construir mecanismos financeiros que tornem atraente uma transformação que, sabemos, tem elevado custo de implantação. No médio e longo prazos, no entanto, a equação de custos se inverte em função dos menores custos de manutenção e operação.

Com a palavra, Ricardo Kenzo Motomatsu.

Grandes Construções – A eletrificação foi praticamente desprezada nas ferrovias de carga no Brasil, ficando sua aplicação restrita ao sistema da Cremalheira, localizado na transposição da Serra do Mar, entre Paranapiacaba e Cubatão (SP). Isso sem falar nos sistemas de passageiros, como trens metropolitanos, metrôs e VLTs. Nos restantes 28 mil quilômetros de malha ferroviária de carga, o que se tem é a tração feita por locomotivas a diesel ou mais recentemente, por híbridas diesel-elétricas. Nesse contexto, como a Siemens vê a possibilidade de desenvolver um programa de eletrificação do sistema ferroviário de carga, fornecendo material rodante e tecnologia de alimentação?

Ricardo Kenzo Motomatsu – Sim, é verdade que temos o sistema de transporte de passageiros sobre trilhos basicamente todo eletrificado. À exceção de pequenos trechos de trens e de VLT, como em Fortaleza (CE), que têm em operação equipamentos movidos a diesel. Mas a tendência é que todos os sistemas no Brasil sejam eletrificados. E o principal impacto da eletrificação é a eficiência do sistema com o máximo aproveitamento da energia que se dá para o equipamento de transporte, para gerar o movimento com o menor consumo possível. O motor mecânico a combustível fóssil tem um rendimento de 30% a 40%. Isso quer dizer que de todo combustível consumido deste motor, eu aproveito entre 30% e 40% para transformar em movimento. Já com o motor eletrificado, o aproveitamento dessa energia, transferida para os eixos de tração, para o movimento chega a 90%, 95%.

Um dos diferenciais do Brasil em relação a outros países é que 60% das nossas plantas de geração de energia elétrica são baseadas em fontes renováveis. Nós temos as usinas hidrelétricas, as eólicas, a geração por biomassa etc. Então, a nossa geração já é “verde”. Se nós aproveitarmos essa “geração verde” dentro dos sistemas de mobilidade de transporte estaremos aderindo ao Acordo de Paris, o COP 21 (N.R.: cujo objetivo é garantir que o aquecimento global não ultrapasse 2°C até 2100).

Existe uma cadeia de pontos positivos a favor da eletrificação. Primeiramente vem a eficiência dos sistemas; em segundo lugar estão as baixas emissões; e o terceiro ponto, que tem um forte mote social é que, quando se pensa nas ferrovias de carga, estamos falando de regiões de baixa densidade populacional. E tudo o que se levar de progresso para essas regiões representa um fator social positivo. A ferrovia eletrificada leva para essas regiões uma rede de energia eletrificada, o que é um diferencial em relação à ferrovia a diesel.

Se a gente aproveitar de forma mais eficiente essa sinergia de uma faixa de domínio, onde eu já tenho uma ferrovia e posso levar, ainda, fibra ótica, usada pela ferrovia para a comunicação de dados para a sua gestão, e associar a isso a rede de energia elétrica, eu levo toda uma gama de utilidades para o interior brasileiro.

GC – A ferrovia seria, nesse caso, um indutor de desenvolvimento?

Ricardo Motomatsu – Exatamente. E para o modo de transporte ferroviário, especificamente, nós estaríamos agregando uma tendência mundial. Por que aqui em São Paulo nós temos essa ligação da baixada com o planalto através de um sistema eletrificado?  Não é somente por causa da cremalheira, mas porque o motor eletrificado consegue entregar um torque maior. Isso porque o motor ferroviário diesel gera energia para tracionar a locomotiva. Já o eletrificado usa o máximo da potência do motor a partir da energia jogada lá dentro. Outra vantagem a favor da eletrificação é a redução das emissões de ruído, porque todo trem, seja de carga ou de passageiros, sempre passa por uma cidade. E esse é um dos maiores problemas das cidades modernas: as emissões associadas ao transporte.

E já que no Brasil estuda-se essa possibilidade de se fazer novos investimentos na ampliação da rede ferroviária nacional, é muito importante que exista a indução ao desenvolvimento de projetos modernos, com base no estado da arte do setor.

CG – Mas ocorre que no modelo de concessão ferroviária adotado no Brasil, as concessionárias ferroviárias não são donas dos ativos, notadamente aqueles relacionados à via permanente. Ao longo dessas décadas de concessões, o que vimos foram investimentos com capital privado na ampliação da frota de vagões e locomotivas, adaptação dessa frota a um novo perfil de cargas e modernização de sistemas. Pouco se fez, com recursos das concessionárias, para aumento ou melhorias da via permanente. Quando muito na manutenção.

Esse mesmo modelo de concessão prevê a devolução dos ativos ao poder concedente, no caso, à União. A quem caberia esses investimentos na eletrificação dos sistemas de carga?

Ricardo Motomatsu – Existem dois cenários a serem avaliados. Um deles é o modelo atual, da ferrovia Norte-Sul, por exemplo, em que o governo investiu em toda a estrutura, que já está montada em grande parte, e agora pode abrir uma concessão operacional. Quem vencer essa concessão terá apenas que manter aquela linha e entrar com o material rodante.

Mas existe outro cenário, novo, que é o das ferrovias novas, que hoje existem apenas em projetos, como é o caso da Ferrogrão. (N.R.: é o projeto de uma ferrovia longitudinal brasileira que formará o corredor ferroviário de exportação com 1.142 km de extensão, conectando a região produtora de grãos do Centro-Oeste do País ao Porto de Miritituba na margem direita do rio Tapajós, em Itaituba, no estado do Pará). Existe uma MIP (Manifestação de Interesse da Iniciativa Privada), apresentada por um grupo privado ao governo federal, para a sua construção, em que os investimentos do Capex seriam 100% desse grupo. (N.R.: Capex é a sigla da expressão inglesa “CAPital EXpenditure”, que em português significa despesas de capital ou investimento em bens de capital, que indica a quantidade de dinheiro gasto na compra de bens de capital de uma determinada empresa).

Nesse caso seria possível estimular esses investimentos já com essa tecnologia da eletrificação. Para isso seria necessário ter um prazo de financiamento e de concessão de permita fazer essa amortização do Capex. Para viabilizar o retorno dos investimentos, estaria sendo estudada uma concessão num prazo de 50 a 60 anos. Assim o investidor conseguiria diluir esse investimento ao longo dos anos, sem sobrecarregar a taxa da operação logística. Esse custo seria amortizado pela tarifa, no valor e padrões atuais.

O empresário que entrar em qualquer um desses dois modelos vai querer que toda a sua estrutura, envolvendo via permanente, material rodante e sistemas esteja 100%. Porque quanto menos interferência ele tiver, quanto menos esse sistema sofrer paradas, maior será a eficiência dessa ferrovia.

A manutenção hoje está muito ligada à governança desses ativos e materiais, da infraestrutura e subestrutura da via permanente, do monitoramento das obras-de-arte etc. A engenharia pode ajudar muito nesse processo, no monitoramento em tempo real.

Para a cadeia da construção, esse novo modelo de concessão será capaz de gerar muitos negócios e demandar novas tecnologias, tais como tecnologias de fundações e sustentações. Nós estamos falando de ferrovias com até 3 mil km de extensão, passando por vários cenários geológicos diferentes, o que dependerá de tecnologias de fundações variadas para permitir o lançamento da superestrutura.

GC – A eletrificação é um investimento viável, economicamente? Muitos especialistas em transporte ferroviários acreditam que, com o advento dos motores diesel-elétricos para locomotivas, principalmente os de corrente alternada, ficou resolvida a questão da otimização da energia, já que o motor primário (motor diesel) aciona um gerador elétrico que transmite a potência para os motores de tração com um aproveitamento da ordem de 90%. Isso dispensando os investimentos exigidos pela eletrificação. Ainda assim, a eletrificação é competitiva?

Ricardo Motomatsu – Na comparação do Capex do sistema eletrificado com o convencional, o investimento adicional é da ordem de 15% a 22%, dependendo da localização e da geometria ferroviária. Isso é quanto eu terei que investir a mais, para ter um sistema eletrificado. Mesmo porque a locomotiva elétrica é um pouco mais cara que a diesel-elétrica. Porém, os custos de manutenção e conservação do sistema e das locomotivas elétricos agregam uma economia de 45%. Portanto, custa muito menos operar e o investimento inicial maior se dilui com o tempo.

GC – O Brasil possui uma frota ativa de cerca de 3.300 locomotivas. Parte delas se encontra em final de vida útil, mas muitas ainda têm muitos anos de capacidade produtiva. Essas máquinas poderiam ser adaptadas para o sistema eletrificado? Se não poderiam, como fazer para que esse ativo valioso não se perca?

Ricardo Motomatsu – No modal ferroviário, não se pode pensar em curto prazo. Boa parte dessas locomotivas tem uma vida útil de 20 ou 30 anos. Nossa proposta não é descartar essa frota existente, até porque a superestrutura ferroviária poderá receber tanto as locomotivas eletrificadas quanto as convencionais, diesel-elétricas, se a bitola for a mesma. A diferença é que vai ser necessária a existência da catenária para a operação das máquinas eletrificadas.

Além disso, não estamos pensando em um processo rápido, do tipo “daqui a dois anos estará tudo eletrificado”. Não é isso. A ideia é trabalhar na aculturação desse modelo, pegando os pilares da sustentabilidade e redução dos custos.

Hoje um dos nossos maiores problemas é o fato de termos um “Custo Brasil” muito alto. Para se ter uma ideia, para fazer uma operação logística, os Estados Unidos gastam US$ 6 por tonelada. Nós gastamos US$ 60. Avaliando os sistemas já implantados, concluímos que a nossa operação é deficiente.  Então, numa perspectiva de desenvolvimento futuro, nós temos que enxergar o máximo de redução dos custos de operação, para esse “Custo Brasil” cair. Para isso temos que buscar tecnologias e sistemas que permitam uma operação mais barata. Nós pensamos em investir em tecnologia para que daqui a 10, 20, 50 anos, o Brasil entre para o cenário de competitividade logística global.

O crescimento do nosso PIB está muito fundamentado, atualmente, no agronegócio. Estamos com uma tecnologia de produção muito boa. Mas precisamos melhor nossa logística.

GC – Aqui no Brasil nós temos um parque de fabricantes de locomotivas restrito a duas empresas: a GE Transportation e a EMD-Caterpillar. Como a Siemens pretende suprir o mercado brasileiro de máquinas elétricas? A expectativa é importar locomotivas ou instalar uma fábrica no país?

Ricardo Motomatsu – Se houver mercado, a Siemens investe em uma planta aqui no Brasil. Hoje nós temos cerca de 35 sites no país, sendo 13 plantas industriais.  E o nosso foco é investir na fabricação local. Só que isso fica difícil quando o país não tem uma política de planejamento para o setor. Isso que nós estamos trazendo para o Brasil é um benchmarking mundial para sistemas de transporte de carga e isso é importante para o país. E se nós queremos entrar para o cenário mundial de competitividade, precisaremos ter um sistema ferroviário eletrificado que garanta a sustentabilidade do modelo.

Se nós tivermos um mercado de 100 locomotivas/ano, justifica até a entrada de mais duas ou três fabricantes de locomotivas elétricas aqui. E a competitividade ajudará a trazer tecnologias mais sofisticadas.

GC – Hoje a Siemens possui unidades de fabricação de locomotivas elétricas em que países?

Ricardo Motomatsu – Na Áustria, Alemanha, China e Estados Unidos. E estamos estudando a possibilidade de instalar uma fábrica para produção de locomotivas na Argentina.

GC – Locomotivas elétricas?

Ricardo Motomatsu – Elétricas e diesel-elétricas. Mas, enfim, em se tratando de ferrovias, nós temos que pensar em planejamento em longo prazo. No Brasil nós precisamos contar com um marco regulatório que nos dê condições que trazer a tecnologia. A importância da construção de uma malha de carga eletrificada está dentro de um cenário de médio e longo prazos, que inclui um Custo Brasil menor, uma melhor sustentabilidade para os sistema e contribuir para levar o desenvolvimento às regiões em torno das linhas, oferecendo uma disponibilidade maior de energia para essas regiões. A eletrificação é positiva para todos os lados.

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