Revista M&T
10/06/2024 13h52 | Atualizada em 09/10/2024 08h44
Não é de hoje que os problemas com transporte coletivo urbano são debatidos no Brasil. De acordo com estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a saturação do sistema de transporte em médias e grandes cidades do país vem se agravando ao longo dos anos, o que é decorrente especialmente do subinvestimento no setor.
Apesar dos avanços alcançados após a promulgação da Constituição de 1988, acentua o estudo, sobretudo a partir da aprovação do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e da Lei de Mobilidade Urbana (Lei n&or
...Não é de hoje que os problemas com transporte coletivo urbano são debatidos no Brasil. De acordo com estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a saturação do sistema de transporte em médias e grandes cidades do país vem se agravando ao longo dos anos, o que é decorrente especialmente do subinvestimento no setor.
Apesar dos avanços alcançados após a promulgação da Constituição de 1988, acentua o estudo, sobretudo a partir da aprovação do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e da Lei de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012), ainda persistem sérios problemas relacionados à governança, gestão e financiamento de projetos na área.
Segundo Miguel Angelo Pricinote, coordenador técnico do Mova-se – Fórum Permanente de Mobilidade, o transporte coletivo urbano representa um serviço de fundamental importância para a mobilidade, a qualidade de vida e o progresso das cidades. Contudo, enfrenta uma série de desafios.
Entre os principais pontos, Pricinote destaca a elevada tarifação, que impede o acesso da parcela de baixa renda da população e fomenta a preferência pelo uso de veículos individuais.
Além disso, também cita a deficiência na infraestrutura, comprometendo a eficácia, segurança e comodidade tanto de usuários quanto de operadores, a emissão de gases, agravando a poluição, e a gestão deficiente, dificultando a integração, fiscalização e implementação de inovações.
“Para transpor tais obstáculos, é imperativo investir em tecnologias inteligentes e sustentáveis, reduzindo custos e emissões e elevando a satisfação dos usuários”, afirma.
Pricinote, do Mova-se: investimentos em tecnologias inteligentes e sustentáveis são imperativos
Para Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, os desafios já vêm de décadas, especialmente pelo país ter um déficit acentuado de transporte coletivo, baseado em equipamentos sobre pneus.
“Temos poucos sistemas metroferroviários em grandes centros”, observa. “O maior desafio é criar uma rede de transporte integrada física e tarifariamente, com grande capilaridade, para que haja maior abrangência nas regiões metropolitanas”, diz.
Segundo ele, o deslocamento a pé corresponde em média a 40% das viagens urbanas no país, mostrando que o transporte coletivo se situa longe da moradia e/ou do trabalho do usuário.
“O fato de o usuário ter de andar no trajeto casa-trabalho-casa mostra que o transporte público está defasado em termos de regularidade e abrangência”, explica.
Quintella, da FGV: mobilidade urbana começa na calçada
DÉFICIT
A análise desse déficit é complexa, pois implica variáveis como demanda, oferta, qualidade e custo. No entanto, alguns indicadores quantitativos podem oferecer uma visão da situação atual.
Em 2014, o Brasil contava com 10,7 km de transporte de média e alta capacidade por milhão de habitantes urbanos. “Embora represente um avanço em relação aos 8,8 km por milhão em 1980, o aumento ainda é insuficiente diante das necessidades”, aponta Pricinote.
Em 2018, diz o especialista, o deslocamento por ônibus representou 85,7% dos deslocamentos realizados via transporte coletivo, enquanto o transporte sobre trilhos (metrô, trem e VLT) correspondeu a apenas 14,3%.
Em contrapartida, o transporte individual motorizado (carro e moto) foi responsável por 38,1% dos deslocamentos urbanos, enquanto o transporte não motorizado (bicicleta e a pé) respondeu por 32,5%.
Além disso, em 2019 o preço médio da passagem de ônibus urbano foi de R$ 4,25, o que representa um aumento de 7,6% em relação a 2018. Na época, esse valor correspondia a cerca de 14% do salário-mínimo vigente se considerado o mês completo.
Para complicar, em 2020 apenas 36,5% dos municípios com mais de 250 mil habitantes possuíam planos de mobilidade urbana, conforme exigido pela Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Além disso, somente 17,6% desses municípios possuíam sistemas de bilhetagem eletrônica integrada. “Essas estatísticas evidenciam um significativo déficit de infraestrutura de mobilidade urbana, que impacta diretamente a qualidade de vida, a inclusão social e o desenvolvimento sustentável das cidades”, avalia Pricinote.
Além desses fatores, Mozar Carvalho, fundador do escritório Carvalho de Machado Advocacia, aponta que a crise foi agravada pela pandemia, evidenciando problemas relacionados ao modelo de financiamento.
Carvalho, do escritório Carvalho de Machado: pandemia agravou o quadro
Porém, antes mesmo da covid-19, a redução no volume de passageiros já impactava o equilíbrio econômico-financeiro das empresas, levando ao sucateamento da frota e à incapacidade de aquisição de novos veículos.
“A exigência de distanciamento social apenas exacerbou esses desafios, com uma queda drástica na demanda e prejuízos bilionários no setor”, descreve o especialista.
AGRAVAMENTO
A partir da pandemia, aponta Bernardo Serra, gerente de políticas públicas do Instituto de Política de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), diversas cidades buscaram soluções para enfrentar o colapso dos sistemas, criando soluções para subsidiar os custos e manter uma oferta mínima.
“A promoção da qualidade do serviço exige a retomada e aceleração dos investimentos para cobrir o déficit de infraestrutura e garantir a renovação da frota”, diz.
Serra, do ITDP Brasil: busca de soluções para enfrentar o colapso dos sistemas
A última estimativa do BNDES, realizada em 2015, apontou a necessidade de implantação de mais de 1,6 mil km de infraestrutura de média e alta capacidade nas 15 maiores regiões metropolitanas.
“O estudo deve ser atualizado nos próximos meses, mas diante do baixo investimento realizado na última década, esse déficit deve crescer exponencialmente”, complementa Serra.
O especialista cita um estudo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), estimando a necessidade de mais de 31 mil novos ônibus para reduzir a atual média de idade da frota de 8,1 para 5 anos.
Junto a isso, adiciona-se a necessidade de avançar na descarbonização. “A necessidade de investimento ocorre em um ambiente regulatório frágil, em um setor marcado por desafios de transparência e estruturas de governança, além da precária situação financeira das empresas que operam os sistemas”, complementa.
Estudos mostram que o setor de mobilidade é um dos mais defasados da infraestrutura nacional
A escassez de investimentos também tem sido diagnosticada por entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), que estima um déficit de R$ 295 bilhões para algumas cidades. Mas a lacuna pode ser ainda maior.
Trabalhos realizados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) indicam um desprovimento da ordem de R$ 360 bilhões na área. Ainda que haja diferenças metodológicas, esses estudos demonstram que o setor é hoje um dos mais atrasados do país em termos de infraestrutura instalada.
Para tentar superar os desafios, recentemente o Ministério das Cidades firmou uma cooperação com o BNDES para realizar um levantamento nas 21 maiores regiões metropolitanas.
De acordo com o órgão, esse estudo nacional deve auxiliar as cidades e regiões metropolitanas no equacionamento do déficit, que envolve não somente a captação de recursos e fontes de financiamento, mas também o aperfeiçoamento nos instrumentos de gestão e governança.
DIRETRIZES
De acordo com Larissa Almeida, advogada do escritório Fonseca Brasil, uma das ferramentas para superar esses obstáculos é a própria Lei de Mobilidade Urbana, que institui diretrizes para a integração dos diferentes modais de transporte.
“A Lei tem como objetivo contribuir para que a população tenha acesso universal à cidade, por meio do planejamento e da gestão do sistema nacional de mobilidade urbana”, diz.
Larissa Almeida, do escritório Fonseca Brasil: lei garante acesso universal à cidade
A legislação, retoma Pricinote, determina que os municípios com população acima de 20 mil pessoas devem conceber e aprovar Planos de Mobilidade Urbana (PMU) levando em consideração princípios e instrumentos estabelecidos pela Política Nacional de Mobilidade Urbana.
“Esses planos devem ser harmonizados com os Planos Diretores, com o propósito de assegurar sustentabilidade, eficiência e acessibilidade nos deslocamentos e na ordenação urbana”, sublinha.
Inicialmente, o prazo para a elaboração de PMUs foi estipulado até abril de 2015, mas foi sendo sucessivamente prorrogado por meio de medidas provisórias e leis.
A mais recente alteração foi promulgada pela Lei no 14.671/23, de dezembro de 2023, estendendo o prazo até 12 de abril de 2024 (para municípios com população superior a 250 mil habitantes) e 12 de abril de 2025 (para localidades com população igual ou inferior a 250 mil habitantes).
Todavia, conforme dados fornecidos pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MIDR), até novembro somente 36,5% dos municípios com população superior a 250 mil habitantes haviam desenvolvido PMUs, enquanto entre os demais municípios esse índice era de apenas 8,9%. “Dessa forma, persiste um desafio considerável para que os municípios brasileiros atendam à legislação e elaborem seus planos”, frisa Pricinote.
Segundo Serra, o avanço regulatório é essencial para que o ônus do investimento e manutenção dos sistemas não seja responsabilidade exclusiva dos municípios. “A coparticipação dos diversos entes permitirá que mais recursos sejam mobilizados para o setor”, pondera.
DESAFIOS
Segundo Pricinote, do Mova-se, os obstáculos para a integração dos modais de transporte urbano englobam diferentes aspectos.
Entre eles, está justamente a deficiência de planejamento e coordenação entre os diferentes entes governamentais (federal, estadual e municipal) e os diversos operadores do sistema de transporte (públicos e privados).
Também há desafios no financiamento e na sustentabilidade econômica dos empreendimentos de mobilidade urbana, que dependem de fontes voláteis de recursos, como tributos, tarifas, subsídios, empréstimos e investimentos privados.
Para completar, a complexidade jurídica e regulatória dos contratos de concessão e PPPs exige atenção a aspectos como definição de responsabilidades, direitos, obrigações, metas, indicadores, penalidades, reajustes, rescisões e arbitragens.
“Além disso, há desalinhamentos entre os segmentos da sociedade, que podem apresentar interesses antagônicos ou discrepantes”, observa Pricinote. “Também podemos citar a necessidade de transparência e controle dos processos, a fim de prevenir fraudes, corrupção, desperdícios, ineficiências e desvios.”
Segundo Carvalho, do escritório Carvalho de Machado, a superação do atraso na cobertura exige uma abordagem multifacetada. De saída, ele ressalta, é fundamental a revisão do modelo de remuneração, movendo-se em direção a um sistema que não dependa exclusivamente das tarifas.
“Isso envolve a implementação de modelos de financiamento mais sustentáveis, capazes de garantir a continuidade e a qualidade do serviço sem sobrecarregar financeiramente a população”, afirma.
Além disso, é essencial a criação de um ambiente regulatório estável e previsível, de modo a atrair mais investimentos privados ao setor. “Isso não só aliviaria o fardo financeiro dos governos locais e nacionais, mas também incentivaria a inovação e a eficiência por meio da expertise do setor privado”, diz o advogado. ♦
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