Com a aprovação do novo marco regulatório, em junho, espera-se que o déficit brasileiro em saneamento, tanto no abastecimento de água potável como na coleta e tratamento de esgoto, torne-se uma realidade distante. Hoje, é o setor mais atrasado da infraestrutura nacional. Em pleno século XXI, quando se fala em inteligência artificial e internet das coisas, apenas 53% dos brasileiros contam com acesso à coleta de esgoto, o que significa que quase 100 milhões de cidadãos estão à margem desse item básico de saúde pública. Para piorar, apenas 46% do esgoto gerado no país são tratados.
Mesmo a cobertura de água tratada está longe do ideal, com quase 35 milhões de pessoas sem o acesso ao serviço. Sem falar das perdas no sistema de distribuição, que alcançam 38,4% na média nacional. Ilustrativos, esses dados são do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
Com a aprovação do novo marco regulatório, em junho, espera-se que o déficit brasileiro em saneamento, tanto no abastecimento de água potável como na coleta e tratamento de esgoto, torne-se uma realidade distante. Hoje, é o setor mais atrasado da infraestrutura nacional. Em pleno século XXI, quando se fala em inteligência artificial e internet das coisas, apenas 53% dos brasileiros contam com acesso à coleta de esgoto, o que significa que quase 100 milhões de cidadãos estão à margem desse item básico de saúde pública. Para piorar, apenas 46% do esgoto gerado no país são tratados.
Mesmo a cobertura de água tratada está longe do ideal, com quase 35 milhões de pessoas sem o acesso ao serviço. Sem falar das perdas no sistema de distribuição, que alcançam 38,4% na média nacional. Ilustrativos, esses dados são do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério do Desenvolvimento Regional, relativos ao ano de 2018. “Embora seja a 9ª maior economia do mundo, o Brasil ocupa a 102ª posição em um ranking mundial de saneamento com 200 países, atrás de África do Sul, Peru e outros países com potencial econômico muito menor”, ressalta Ana Luiza Fávaro, diretora técnica da área de biologia da Acqua Expert Engenharia Ambiental.
Desnecessário lembrar que a falta de saneamento – além de manchar a reputação internacional do país – também acarreta enormes impactos negativos à saúde pública. Como destaca o diretor executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares, isso se tornou ainda mais evidente com a pandemia de covid-19, que atinge mais severamente as áreas carentes de estrutura sanitária. “A água tratada e de qualidade é fundamental para combater a covid-19”, diz ele. “Porém, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados em maio revelam que 18,4 milhões de brasileiros não recebem uma gota sequer de água encanada.”
ENTRAVE
Segundo o Instituto Trata Brasil, uma das maiores referências do assunto no país, o custo projetado para universalizar o acesso aos serviços de saneamento (incluindo ainda resíduos e drenagem, além de água e esgoto) é de R$ 508 bilhões, no período de 2014 a 2033. Para a universalização da água e do esgotamento sanitário, o montante chega a R$ 303 bilhões nesses mesmos 20 anos.
Percy Soares, da Abcon, vê agravamento da situação em mais áreas carentes de estrutura sanitária
O período refere-se à meta do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), lançado em 2014 com a proposta de garantir que, até 2023, 100% do território nacional esteja abastecido por água potável e, até 2033, 92% dos esgotos sejam coletados e tratados. Mas, até aqui, os recursos não têm sido suficientes. “Sem dúvida, o principal entrave é a falta de investimento, até porque a maior parte das cidades reinveste muito pouco do que é arrecadado com serviços de saneamento”, aponta Fávaro, da Acqua.
Para ela, só existe um caminho para a estruturação do saneamento, que é o investimento pesado nesse tipo de infraestrutura. Isso apesar do fato de que, segundo estudos do Instituto Trata Brasil, cada R$ 1 investido em saneamento gere um incremento de R$ 1,22 de renda na economia. “Não importa se o investimento virá da iniciativa privada ou pública, o principal é que aconteça o quanto antes para evitar que mais pessoas adoeçam e morram, o que é um efeito direto da falta de saneamento”, reitera.
A especialista toca no aspecto mais sensível do problema. Segundo Soares, da Abcon, nos últimos anos o investimento médio no setor tem girado em torno de R$ 10 a R$ 12 bilhões/ano, uma média muito abaixo do que seria necessário para o país atingir a universalização. “As concessões privadas respondem por 20% do total investido, em 179 contratos”, ele posiciona, destacando que essas empresas estão presentes em 292 localidades, de um total de 5.570 municípios no país, além do Distrito Federal.
Para a bióloga Ana Luiza Fávaro, da Acqua, as cidades reinvestem pouco em saneamento
Considerando-se as metas do Plansab, com esse nível de investimento será necessário mais meio século para a meta ser atingida. Para acelerar o processo é preciso investir no setor, o que não tem sido nada fácil dada a conjuntura. “Os entraves do saneamento podem ser resumidos a dois fatores: a crise fiscal do Estado, que não permite que estados e municípios destinem os altos investimentos que o serviço necessita, e a falta de segurança jurídica, que afasta o potencial de investimento da iniciativa privada no setor”, comenta Soares. “Nesse quadro, o novo marco legal do saneamento é necessário para desatar esses nós de um mercado que se encontra historicamente estagnado.”
NOVO MARCO LEGAL
É justamente nesse ponto que recaem as esperanças de que o setor finalmente deslanche. Em junho, o Senado aprovou o Projeto de Lei no 4162, que atualiza o marco regulatório do saneamento básico no Brasil com mudanças estruturais importantes, visando um salto de investimentos com a ampliação da presença do segmento privado no setor. Atualmente, apenas 3% das cidades contam com serviços privados, enquanto 70% são estaduais e 27% municipais.
O texto aprovado – que, no momento do fechamento desta edição, seguiria para sanção presidencial – prevê uma regulação mais coordenada do setor, com diretrizes nacionais a serem estabelecidas pela ANA (Agência Nacional de Águas), maior indução à competição entre os players e divisão do mercado em blocos de municípios, permitindo que a prestação de serviço regionalizada atenda a cidades com diferentes configurações em um só contrato, gerando escala e rentabilidade.
Novo marco regulatório é visto como fundamental para superar entraves históricos no setor
Nesse sentido, o projeto se propõe a viabilizar o chamado ‘subsídio cruzado’, em que municípios com maior potencial de mercado compensam as margens menores de retorno (tarifa) em localidades com menor atratividade. “A divisão em blocos de municípios para a prestação de serviços por parte das operadoras em consórcio é uma alternativa endereçada pelo PL e que deve cumprir essa demanda”, comenta Soares. “Já há bons exemplos de concessões privadas operando com o modelo de consórcios de municípios, como na região dos Lagos, no Rio de Janeiro.”
Para Fávaro, da Acqua, o subsídio cruzado é fundamental para viabilizar a universalização do serviço, chegando a indivíduos que, em tese, não teriam condições de arcar com os custos necessários para usufruir dos serviços de abastecimento de água e coleta de esgoto. No caso, a compensação de preços é considerada em três condições: o subsídio entre municípios ou bairros, entre indivíduos, na forma de tarifa social, e entre tipos de usuários, em que as tarifas residenciais são mais baratas que as comerciais e industriais. “Não é uma equação fácil, mas é perfeitamente viável’, aponta a especialista. “E, com o novo marco, a tendência é diminuir mais rápido este gargalo histórico do país, pois o setor precisa de investimentos para chegar a um nível aceitável em saneamento.”
Além da saúde pública, saneamento também alavanca investimentos, ressalta o senador Alessandro Vieira
Relator da proposta, o senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE) afirma que o novo marco regulatório se tornou ainda mais relevante no cenário de pandemia. “A aprovação do novo marco foi um dos nossos projetos prioritários, tanto porque é relevante para o aspecto sanitário como também porque alavanca investimentos em um momento que a nossa economia vai precisar disso”, frisa.
CONCORRÊNCIA
Malgrado a necessidade de investimentos, a abertura de espaço no setor para as empresas privadas revelou-se o principal impasse em torno do modelo recém-aprovado. Segundo a Agência Senado, os parlamentares da oposição alegavam que a exigência de licitações e as metas de desempenho para contratos contidas no novo marco regulatório tendem a prejudicar as empresas públicas. Além disso, o texto estabelece prioridade no recebimento de auxílio federal aos municípios que efetuarem concessão ou privatização dos seus serviços.
Édison Carlos, do Trata Brasil, diz que é urgente atrair recursos para o setor avançar no país
O presidente da Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), Luiz Gonzaga Alves Pereira, reconhece que o novo marco legal acaba de vez com os chamados ‘contratos de programa’, que privilegiam as empresas públicas em detrimento do setor privado. “Mas não ter uma livre competição é ruim para o país e para a sociedade”, diz ele. “E sem concessões ou PPPs, o segmento não prosperará.”
O diretor da Abcon, por sua vez, pondera que o Estado não possui recursos para efetuar sozinho a escala de investimentos necessária para se alcançar a universalização dos serviços. “Além disso, a aproximação entre o público e o privado contribui para a melhoria da gestão dos recursos hídricos e da sustentabilidade das operações, como já ocorre com alguns Comitês de Bacias Hidrográficas, em que um grupo de pessoas se reúne para discutir sobre o uso da água em determinada bacia hidrográfica”, acresce Soares.
Na mesma linha, o presidente executivo do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos, destaca que a lei permite uma maior participação da iniciativa privada, seja via concessão, PPPs ou outros formatos. “O país precisa em torno de R$ 25 bilhões por ano para o saneamento e, por isso, é preciso achar outras formas de recursos, pois o governo não conta com esse montante”, sublinha.
De acordo com Fávaro, da Acqua, as concessões já estabelecidas têm trazido resultados positivos, sendo que as cidades onde as companhias privadas atuam registram um índice médio de 72% em coleta de esgoto, por exemplo, bem acima da média nacional, de 53%. Ademais, a especialista acredita que o processo é viável, comparando com o exemplo da telefonia. “A partir do momento em que se abriu para o investimento privado, a maioria das pessoas passou a ter acesso a esse tipo de serviço”, afirma.
PRIORIDADE
Para Gonzaga, da Abetre, o mundo será outro depois da covid-19, pois as empresas e os governos precisarão adotar outro tipo de ação, mais objetiva e assertiva. “É necessário que a atitude e o trabalho dos políticos, inclusive no Parlamento, sejam mais efetivos na direção dos interesses da população”, reivindica.
Luiz Gonzaga, da Abetre, pondera que cenário exige uma atuação política mais efetiva
Segundo ele, com o volume de recursos públicos que o governo federal e os estaduais estão injetando no combate ao novo coronavírus, a janela para resolver o problema do saneamento está se tornando ainda mais crítica. De modo que, sem a presença do capital privado, o setor não atingirá a meta de universalização em 2033. “Nesse momento de pandemia, no qual a higiene, o ato de lavar as mãos e a qualidade do meio ambiente são fundamentais para a contenção do contágio, é muito preocupante constatar que milhões de brasileiros não têm água encanada, coleta e tratamento de esgotos”, afirma. “Se as autoridades quiserem retomar a economia, será necessário realizar esses investimentos, com ampla participação da iniciativa privada, gerando empregos, desenvolvimento e avanço em um setor no qual somos extremamente atrasados.”
Já Fávaro, da Acqua, espera que a pandemia da covid-19 acelere o processo em direção à universalização, pois as ações básicas de higiene constituem uma das principais formas de prevenção. Por outro lado, ela lembra que o país já convive com números alarmantes na saúde pública por conta da falta de saneamento, contabilizando uma média de 230 mil internações por ano decorrentes de doenças de veiculação hídrica. “Tal situação deveria colocar o saneamento como prioridade de qualquer governo, com ou sem pandemia’, finaliza a bióloga.
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