Revista M&T
10/05/2022 14h17 | Atualizada em 04/08/2022 13h37
Por Augusto Diniz
Na primeira metade do século XX, acreditava-se que o veículo motorizado sobre pneus era, de fato, a solução ideal de transporte nas cidades. Já naquela época, porém, a humanidade começou a encontrar um problema. “Toda vez que se abria uma via nova como solução para congestionamentos, rapidamente se enchia de tráf
...Por Augusto Diniz
Na primeira metade do século XX, acreditava-se que o veículo motorizado sobre pneus era, de fato, a solução ideal de transporte nas cidades. Já naquela época, porém, a humanidade começou a encontrar um problema. “Toda vez que se abria uma via nova como solução para congestionamentos, rapidamente se enchia de tráfego”, conta Marcos de Souza, diretor do Mobilize Brasil, primeiro ambiente virtual do país com estudos sobre mobilidade urbana sustentável.
A ideia de dar mais fluidez ao tráfego nas cidades, com a criação de novas avenidas, viadutos e túneis, também é antiga. Na medida em que gera facilidade para seu uso, mais pessoas são estimuladas a utilizar o carro nas ruas. “Além da poluição, um dos problemas centrais do carro é o espaço”, aponta o especialista. “A média de passageiros por veículo é de 1,3 pessoa. E ainda têm de ser guardados em estacionamentos.”
Por isso, em décadas recentes o foco dos projetos de mobilidade passou a ser a restrição do uso do automóvel, junto ao estímulo à aplicação de outros meios para se locomover. Tanto que entre as diretrizes do Plano Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), instituído em janeiro de 2012, está a priorização dos serviços de transporte público coletivo sobre o individual motorizado. Para Souza, o PNMU está sintonizado com “o que há de mais avançado na mobilidade urbana sustentável no mundo”.
Souza, da Mobilize: forma de deslocamento gera impactos para a cidade, os bairros e as pessoas
Pelo cronograma, o plano deveria ter entrado em vigor em 2015. No entanto, um número reduzido de cidades completou seus planos no prazo, inclusive capitais. Com isso, a nova data-limite para as cidades com mais de 250 mil habitantes formularem suas estratégias passou a ser 12 de abril deste ano.
ACESSIBILIDADE
Um dos maiores desafios globais atuais, a mobilidade urbana sustentável é um conceito amplo, mas basicamente centra-se na circulação de bens e pessoas em diferentes meios de transportes, incluindo desde ônibus (comuns, articulados, BRTs, micro-ônibus), veículos sobre trilhos (metrô, trens, monotrilhos, VLTs, bondes), teleféricos, barcas e ciclovias até esteiras rolantes e elevadores de alta capacidade.
Até mesmo as calçadas são elementos de mobilidade, assim como automóveis e caminhões. “É um tema transversal, com impacto direto em muitos outros assuntos”, comenta Rick Ribeiro, consultor da Ernst & Young e fundador da Mobilize. “A acessibilidade e a mobilidade urbana sustentável garantem à população o acesso à cidade e às oportunidades de emprego, estudos, lazer e serviços públicos.”
Ribeiro, da EY: mobilidade urbana sustentável garante acesso à cidade e suas oportunidades
De acordo com ele, a integração física (ou conexão) desses meios em um sistema mais eficiente, sob premissas socioambientais, deve ser a meta de qualquer plano de mobilidade urbana sustentável. Começando pelo ônibus, peça fundamental de mobilidade e que responde por quase 90% do transporte coletivo no país – em muitos países desenvolvidos esse número mal passa de 50%.
Não podia ser diferente. Diferentes pesquisas sobre o tema revelam que um único ônibus em operação pode substituir mais de 30 carros das ruas. Souza, porém, indica para a necessidade de manutenção da frota e de tarifas acessíveis – no Brasil, ela é considerada alta em relação à renda média da população. “O que muitas cidades do mundo estão fazendo é investir maciçamente no ônibus, que é muito capilar”, afirma o especialista, esclarecendo tratar-se de uma solução de curto prazo.
Ele destaca que a conversão para ônibus elétricos tem tornado o meio ainda mais atrativo. Apesar das vantagens, todavia, não se pode eliminar a importância de investimentos em outros meios, até porque distâncias mais longas e alta capacidade de passageiros envolvem a adoção de diferentes sistemas de mobilidade. “É necessário viabilizar novas formas de financiamento dos transportes públicos que não se baseiem fundamentalmente no valor pago pelos usuários”, ressalta Lorena Freitas, coordenadora de gestão da mobilidade do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP).
Freitas, da ITDP: necessidade de novas formas de financiamento para o transporte
A chamada “mobilidade ativa” é ponto central para a transformação das cidades, diz ela, referindo-se aos deslocamentos a pé ou de bicicleta. A prática ganhou vulto nas grandes cidades da Europa a partir dos anos 1990, ampliando o espaço para pedestres e ciclistas e, simultaneamente, diminuindo o de automóveis.
Pesquisa realizada antes da pandemia por uma empresa de aplicativos de mobilidade indica que 60% das viagens de carro na cidade de São Paulo situam-se entre 2 km e 5 km. Logo, são saídas curtas, para levar crianças à escola, por exemplo. “Esses deslocamentos poderiam ser feitos a pé se houvesse uma boa calçada, tornando o passeio seguro e agradável”, ressalta Souza. “Ou mesmo de bicicleta ou transporte público, se oferecessem boas condições de circulação.”
COMPLEXIDADE
Com a pandemia, a mobilidade urbana sustentável ganhou novos contornos. Um documento divulgado em agosto do ano passado pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), intitulado “A Nova Mobilidade no Brasil”, trata das transformações ocorridas em torno do tema em função do contexto atual.
A chamada Nova Mobilidade refere-se à incorporação de tecnologias ao setor, como a utilização de aplicativos para informações em tempo real, soluções diferenciadas de pagamentos, integração entre modos de transporte, serviços de compartilhamento e veículos sob demanda, dentre outras.
A digitalização imposta pela pandemia acelerou a introdução dessas práticas, ou pelo menos abriu portas para o avanço. No limite, a necessidade de distanciamento social e preocupação com novas pandemias imprimem um novo modelo para os serviços de transporte, com maior auxílio da tecnologia – os aplicativos podem ser uma “mão na roda” na tomada de decisão, afastando o desejo de aquisição e uso do automóvel.
A Mobilize, porém, indica que o tema é bem mais complexo. Segundo essa organização sem fins lucrativos, a sociedade terá de conviver com regras de distanciamento e locais mais arejados nos ambientes de compartilhamento da mobilidade – mas também se sabe que a ocupação de passageiros por metro quadrado no transporte público brasileiro está, na maioria dos casos, bem acima da média recomendada. “Nesse ponto, percebe-se como a pandemia foi cruel com a população mais pobre e dependente do transporte público”, afirma Lorena Freitas, do ITDP.
Além disso, por conta dos persistentes riscos de contaminação, há a chance de haver maior migração para o veículo particular. “A falta de opções seguras e de qualidade também serve de estímulo ao uso do transporte individual, acentuando uma tendência de migração para carros e motos, já observada pela Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE”, explica a coordenadora. “A pandemia mostrou a importância dos modos ativos (a pé ou por bicicleta) no conjunto de sistemas da mobilidade.”
As bicicletas públicas, ela acentua, são uma solução bastante adequada para trechos entre 5 km e 10 km. Esse meio de modalidade chegou ao Brasil em 2011, inicialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje, mais de 20 cidades já contam com o serviço no país.
ESTÍMULOS
Também é conhecido que aproximadamente metade dos deslocamentos diários realizados nas cidades brasileiras tem como origem ou destino o local de trabalho. “E a forma que essas pessoas se deslocam gera diferentes impactos para a cidade, os bairros e suas próprias vidas”, sublinha Ribeiro.
Nesse aspecto é que entra a chamada “mobilidade corporativa”. “Uma parte importante da transformação de uma sociedade em direção à sustentabilidade está na mudança de atitude das pessoas”, ele prossegue. “E essa mudança certamente é mais fácil com as empresas apoiando.”
O consultor da EY explica que as empresas têm a capacidade de sensibilizar internamente sobre a importância do tema, “estabelecendo ônus e bônus que tornem os deslocamentos por transportes coletivos e ativos mais atrativos financeiramente que os realizados por automóvel”.
Para ele, a tendência em grandes cidades de as pessoas morarem perto do local de trabalho também faz grande diferença na mobilidade urbana. “O poder público é o principal responsável por equacionar uma melhor distribuição da população no território”, afirma Ribeiro. “Nesse sentido, uma solução é estimular, por meio de leis e incentivos, que os bairros se tornem multifuncionais, reunindo moradia, emprego, estudos e lazer.”
Alguns modelos mostram o caminho. “Economicamente, a Europa e a China lideram o tema de mobilidade urbana sustentável”, afirma Souza, da Mobilize, destacando que, a despeito do transporte de massa altamente disseminado e variado, as ciclovias tomaram a ruas do Velho Continente. “Viajar de bicicleta na Europa é algo relativamente simples, até porque existe uma integração muito grande de transportes onde se pode levar a bicicleta”, diz.
Já na China foi adotado um projeto nacional de transporte público muito eficiente. Há, por exemplo, cidades menores que São Paulo com rede de metrô maior que a da capital paulista. Ônibus elétricos também se disseminam rapidamente por lá.
INICIATIVAS
No Brasil, a cidade de Curitiba por muito tempo foi considerada um modelo de urbanismo e elogiada pelo sistema de transporte, amplamente copiado no país, que tem o BRT no centro da mobilidade.
No Brasil, iniciativas como a de Curitiba vêm sendo replicadas em outras cidades
“A Copa do Mundo [de 2014] fez surgirem vários projetos de mobilidade nas cidades, com alguns sendo desenvolvidos”, afirma Souza, lembrando que algumas iniciativas essenciais não vingaram, como o BRT Transbrasil, até hoje em obras. “O Rio de Janeiro se aproximou mais na implantação das propostas, o que não significou uma melhoria das condições de vida do carioca”, diz ele.
Em Fortaleza (CE), já há alguns anos vêm sendo desenvolvidas iniciativas com priorização do pedestre, faixas exclusivas para ciclistas, melhoria do transporte público, ações educativas e até mesmo um pioneiro sistema de carros elétricos compartilhados.
Até abril de 2021, a capital cearense já havia implantado 78,2 km de ciclovias. “Essa medida foi possível devido à arrecadação do sistema de estacionamentos rotativos, que são destinados integralmente à infraestrutura cicloviária”, esclarece a coordenadora do ITDP, acrescentando que São José dos Campos (SP) também conta com projetos importantes na área. “Veículos leves sobre pneus (VLPs) 100% elétricos estão sendo introduzido na cidade, com capacidade de acomodar 168 passageiros”, diz.
Mobilidade urbana sustentável centra-se na circulação de bens e pessoas em diferentes meios
Essa virada é urgente, mas ainda insuficiente. Segundo dados do IBGE, 85% da população brasileira vivem em áreas urbanas. E a expansão progressiva das cidades representa mais deslocamentos de bens e pessoas. “Os sistemas se moldam de forma a garantir o lucro e a sustentabilidade financeira, ainda que isso signifique sacrificar o acesso de determinados grupos às suas atividades”, afirma Lorena Freitas.
Exemplo disso são as regiões periféricas, que contam com menos opções de transporte. “Nesse sentido, incluir a participação da população em todas as etapas – não só no planejamento, mas também na implementação e no monitoramento – é uma forma de tentar garantir que os sistemas cumpram seu papel social”, conclui.
Saiba mais:
Ernst & Young: www.ey.com/pt_br
ITDP: https://itdpbrasil.org
Mobilize: www.mobilize.org.br
27 de novembro 2024
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