Mesmo após a entrada em operação, Belo Monte continuará em foco, agora como modelo experimental de uma usina em plena floresta amazônica, em região indígena, e de função estratégia para a segurança nacional. Sua história não deverá se encerrar com sua conclusão. E não há como renegar seus erros e seus acertos. Ao contrário, eles servem ao País como um aprendizado para os caminhos que se deseja trilhar para o futuro, para garantir sua segurança energética.
Para entender um pouco essa história é preciso voltar no tempo e relembrar a crise do apagão, que ocorreu entre os anos de 2001 e 2002, e afetou especialmente as regiões Sudeste e Centro-Oeste. O termo “Apagão" foi adotado como referência às interrupções ou falta de energia elétrica frequentes, que ocorreram naquela época. A crise ocorreu por falta de planejamento e de expansão dos sistemas de geração e distribuição de energia, sendo agravada pelas poucas chuvas.
O Brasil celebrava, então, a estabilidade econômica e ensaiava os passos na globalização, com a recuperação da atividade industrial. Mas a cr
Mesmo após a entrada em operação, Belo Monte continuará em foco, agora como modelo experimental de uma usina em plena floresta amazônica, em região indígena, e de função estratégia para a segurança nacional. Sua história não deverá se encerrar com sua conclusão. E não há como renegar seus erros e seus acertos. Ao contrário, eles servem ao País como um aprendizado para os caminhos que se deseja trilhar para o futuro, para garantir sua segurança energética.
Para entender um pouco essa história é preciso voltar no tempo e relembrar a crise do apagão, que ocorreu entre os anos de 2001 e 2002, e afetou especialmente as regiões Sudeste e Centro-Oeste. O termo “Apagão" foi adotado como referência às interrupções ou falta de energia elétrica frequentes, que ocorreram naquela época. A crise ocorreu por falta de planejamento e de expansão dos sistemas de geração e distribuição de energia, sendo agravada pelas poucas chuvas.
O Brasil celebrava, então, a estabilidade econômica e ensaiava os passos na globalização, com a recuperação da atividade industrial. Mas a crise deu um banho de água gelada naquela expectativa. O governo federal lançou um plano emergencial de construção de termelétricas, financiado pelo Encargo de Capacidade Emergencial (Seguro-Apagão), adotado de março de 2002 a junho de 2006.
A região Sudeste passou pelo racionamento de energia. A crise foi superada, mas deixou sequelas, como a queda da produção industrial e o alerta de que a infraestrutura do País, de modo geral, estava em ritmo de apagão. Mais tarde ocorreria o “apagão” dos aeroportos, dos portos, das rodovias, da infraestrutura urbana, dos transportes, revelando o abismo entre economia e as novas demandas populares.
Terra sagrada
O aproveitamento hidrelétrico da Amazônia, estimado em 60% do total do País, começou a ser diagnosticado na década de 1970, a partir da criação da Eletronorte, subsidiária das Centrais Elétricas Brasileiras - Eletrobras na Amazônia Legal, responsável pelos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu.
O trabalho de mapear o rio e seus afluentes e definir os pontos mais favoráveis para barramentos ficou sob a responsabilidade do Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A. (CNEC), integrante do grupo Camargo Côrrea. O estudo, concluído na década de 1980, previu sete barramentos, que gerariam 19 mil megawatts (MW), metade da capacidade instalada nas hidrelétricas brasileiras à época. Essas usinas representariam o alagamento de mais de 18 mil km2 e atingiriam sete mil índios, de 12 Terras Indígenas, além dos grupos isolados da região. A partir das recomendações do relatório final do estudo, a Eletronorte iniciou os estudos de viabilidade técnica e econômica do chamado Complexo Hidrelétrico de Altamira, que reunia as Usinas de Babaquara (6,6 mil MW) e Kararaô (11 mil MW), nome originalmente dado à usina de Belo Monte, uma referência ao grito de guerra na língua dos Kaiapós.
O Plano 2010 - Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/2010 propôs, enfim, a construção de 165 usinas hidrelétricas até 2010, 40 delas na Amazônia Legal, com o aumento da potência instalada de 43 mil MW para 160 mil MW, e destacava: "pela sua dimensão, o aproveitamento do Rio Xingu se constituirá, possivelmente, no maior projeto nacional no final deste século e começo do próximo".
Os estudos do Plano indicam Belo Monte como a melhor opção para iniciar a integração das usinas do Rio Xingu ao Sistema Interligado Brasileiro. Até então, os estudos de Babaquara eram a prioridade. Em 1988, o Relatório Final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu é aprovado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), extinto órgão regulador do setor elétrico. É quando se inicia também um movimento de repercussão mundial contrário a sua construção.
Nesse mesmo ano, os líderes kaiapó Paulinho Paikane Kube-I Kaiapó, e o etnobiólogo Darrel Posey, do Museu Emílio Goeldi do Pará, participam, em janeiro, na Universidade da Flórida, em Miami (EUA), de um simpósio sobre manejo adequado de florestas tropicais. Ali, relatam indignados que o Banco Mundial (BIRD) iria financiar um projeto de hidrelétricas no Xingu que inundaria sete milhões de hectares e desalojaria 13 grupos indígenas.
Apesar de serem diretamente atingidos, os índios não tinham sido consultados. Foram então convidados a repetir o relato em Washington. Já em março, pelas declarações em Washington, Paiakan e Kube-I são processados e enquadrados na Lei dos Estrangeiros. Quando voltam ao Brasil, recebem o apoio do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), uma das organizações que originou o Instituto Socioambiental (ISA), que faz campanha mobilizando a opinião pública contra o projeto. Somente em 16 de fevereiro de 1989, o Tribunal Federal de Recursos decidiria pela concessão de habeas corpus aos dois e também pelo trancamento da ação penal.
Em novembro, lideranças Kaiapó se reúnem na aldeia Gorotire para discutir as barragens projetadas para o Rio Xingu, ocasião em que decidem convidar autoridades brasileiras para um grande encontro com os povos indígenas que seriam afetados pelas usinas. No ano seguinte, é realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro, em Altamira (PA). Seu objetivo é protestar contra as decisões tomadas na Amazônia sem a participação dos índios e contra a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu.
O evento recebeu a atenção da mídia nacional e estrangeira, e de movimentos ambientalistas e sociais, reunindo 3 mil pessoas. Entre elas: 650 índios de diversas partes do País e de fora, lideranças como Paulo Paiakan, Raoni, Marcos Terena e Ailton Krenak, e José Antônio Muniz Lopes, diretor da Eletronorte, que mais tarde se tornaria o presidente da companhia, além do cantor inglês Sting, entre um grande número de jornalistas de todo o mundo.
Durante a exposição de Muniz Lopes sobre a construção da usina Kararaô, a índia Tuíra, prima de Paiakan, levanta-se da platéia e encosta a lâmina de seu facão no rosto do diretor da estatal num gesto de advertência, expressando sua indignação. Mais tarde, o próprio Muniz Lopes explicaria a atitude de Tuíra – “foi uma reação ao que foi falado que a usina iria destruir seus rios e sua floresta”. Além disso, o nome índigena, Kararaô, representava uma apropriação indevida da cultura indígena, uma “ofensa” a sua cultura. Posteriormente, o próprio Muniz Lopes anunciou que, por significar uma agressão cultural aos índios, a usina Kararaô receberia outro nome e não seriam mais adotados nomes indígenas em usinas hidrelétricas.
A cena é reproduzida em jornais de diversos países e torna-se histórica. O Brasil vivia, então, os primórdios do governo Fernando Collor de Melo, primeiro governo civil eleito pelo voto popular, depois de 20 anos de governo militar. Mais do que simbólica, a cena da índia e seu facão demarcou uma nova era no País, em que decisões como a construção de uma grande usina passou a ser compartilhada com a população brasileira, incluindo os indígenas, em seus aspectos positivos e negativos.
Uma grande mudança de paradigma. “Kararaô”, diriam os indígenas. A partir daí é lançada a Campanha Nacional em Defesa dos Povos e da Floresta Amazônica. E em 1994, um novo projeto foi apresentado aos órgãos competentes e à Eletrobras, prevendo a redução do reservatório de 1.225km2 para 400 km2, evitando a inundação da área indígena Paquiçamba.
Para Belo Monte, assim como para outras usinas posteriores como Santo Antonio, Jirau e Teles Pires, adotou-se o modelo de usina a fio d´água, que utiliza o regime pluviométrico do rio, sem a construção de grandes reservatórios e, consequentemente, de alagamentos de grandes áreas. A questão indígena e ambiental foi assim, em parte, atendida. Por outro lado, fica uma lacuna e um ponto de interrogação na estratégia de segurança operacional do Sistema Interligado, que só o futuro poderá responder.
Duas décadas de atraso
Na década de 1990, a Eletrobrás solicita então a autorização à Aneel para, em conjunto com a Eletronorte, desenvolver o complemento dos Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. Na década seguinte, o Plano Plurianual de 2000-2003 inclui a usina de Belo Monte como um projeto estruturante do Eixo de Desenvolvimento - Madeira/Amazonas. A Fundação de Amparo e Desenvolvimento de Pesquisas (Fadesp), vinculada à Universidade Federal do Pará (UFPA), é contratada para elaborar os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.
Em maio de 2001, já em plena crise do apagão, o Ministério das Minas e Energia anuncia um plano de emergência de US$ 30 bilhões para aumentar a oferta de energia no País, com a construção de 15 usinas hidrelétricas, entre as quais o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, que seria avaliado pelo Conselho Nacional de Política Energética - órgão criado em 1997, vinculado ao Ministério de Minas e Energia. Em setembro daquele mesmo ano, Resolução do Conselho Nacional de Política Energética reconhece Belo Monte como sendo de interesse estratégico no planejamento de expansão de hidreletricidade até 2010. Teria início, então, uma nova e longa batalha jurídica e política para iniciar as obras da usina. O então presidente Fernando Henrique Cardoso fala em “birra” ambientalista, uma vez que várias concessões já tinham sido feitas.
Essa disputa atrasou a obra em mais uma década e fez com que somente em maio de 2003, o governo federal, já sob as mão de Luis Inácio Lula da Silva, realizasse os estudos de impacto ambiental para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, obedecendo às recomendações do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente.
Em maio de 2008 – 19 anos depois do I Encontro de Povos Indígenas - ocorre o Encontro Xingu Vivo para Sempre que reúne representantes de populações indígenas e ribeirinhas, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pesquisadores e especialistas, para debater impactos de projetos de hidrelétricas na Bacia do Rio Xingu. Belo Monte agora faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
A mobilização, realizada em Altamira, reúne três mil pessoas - 650 índios - para protestar contra a construção já prevista de cinco hidrelétricas no Rio Xingu. Durante o encontro de 2008, índios entram em confronto com o responsável pelos estudos ambientais da hidrelétrica de Belo Monte e, no meio da confusão, o funcionário da Eletrobrás e coordenador do estudo de inventário da usina, Paulo Fernando Rezende, fica ferido, com um corte no braço. Após o evento, o Movimento divulga um documento final alertando sobre ameaças ao Rio Xingu.
Em 2010, finalmente, o Ministério do Meio Ambiente concede a licença previa para construção da usina, apesar de reconhecer que questões centrais para avaliar o impacto da obra ainda não estão esclarecidas.
E em abril, na primeira gestão do governo de Dilma Roussef, a ANEEL realiza o leilão de Belo Monte, vencido pelo Consórcio Norte Energia (composto, na época, por Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), com 49,98%; Construtora Queiroz Galvão S/A, com 10,02%; Galvão Engenharia S/A, com 3,75%; Mendes Junior Trading Engenharia S/A, com 3,75%; Serveng-Civilsan S/A, com 3,75%; J Malucelli Construtora de Obras S/A, com 9,98%; Contern Construções e Comércio Ltda, com 3,75%; Cetenco Engenharia S/A, com 5%; Gaia Energia e Participações, com 10,02%.
Hoje, a Norte Energia é composta por: Grupo Eletrobrás – Eletrobras: 15,00%, Chesf: 15,00%, Eletronorte: 19,98%; Entidades de Previdência Complementar – Petros: 10,00%, Funcef: 5,00%; Fundo de Investimento em Participações – Caixa FIP Cevix: 5,00%; Sociedade de Propósito Específico – Belo Monte Participações S.A. (Neoenergia S.A.): 10,00%, Amazônia (Cemig e Light): 9,77%; Autoprodutoras – Vale: 9,00%, Sinobras: 1,00%; Outras Sociedades – J.Malucelli Energia: 0,25%).
Desde o início, o Consórcio Norte Energia teve de enfrentar dificuldades para cumprir as condicionantes impostas pela Licença Prévia e que, em tese, sanariam as lacunas detectadas no Estudo de Impacto Ambiental. Diante da impossibilidade de conceder a Licença de Instalação – autorização para o início das obras –, o então presidente substituto do Ibama, Américo Ribeiro Tunes, emite uma licença de instalação “parcial”, que permite a construção de alojamentos, canteiro industrial e área de estoque de solo e madeira.
Logo depois, o Ibama concede uma autorização de supressão de vegetação que permitiu a eliminação de 238,1 hectares de vegetação, dos quais, 64,5 hectares estão em Área de Preservação Permanente (APP). Pouco depois, a licença parcial é suspensa por liminar, e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH) requer do governo brasileiro a paralisação de Belo Monte, até que as pendências constitucionais com os povos indígenas sejam resolvidas. O governo reage ao requerimento da CIDH, e logo após, em maio, o presidente do Ibama, Curt Trennepohl, anuncia liberação da licença definitiva para a construção de Belo Monte.
Em outubro, movimentos sociais e indígenas realizam novo encontro em Altamira e promovem uma ocupação de um dia do maior canteiro de obras da usina, o Sitio Belo Monte. Um interdito proibitório emitido pela justiça estadual obriga a retirada dos manifestantes do local. No final do ano, a Ação Civil Publica do Ministério Publico Federal sobre a falta de oitivas indígenas é apreciada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, e por dois votos a um é indeferida.
É dada a largada para a obra. A partir daí, outros problemas se sucederiam, como reivindicações dos trabalhadores, greves, paralisações, liminares judiciais. Mas Belo Monte finalmente começa a ganhar forma no meio da mata.
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