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Revista GC - Ed.105 - Julho 2024
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ESPECIAL SANEAMENTO

O peso da tecnologia para a universalização

A tecnologia exerce um papel importante para cumprir os objetivos da lei, com capacidade de reduzir custos e aumentar a cobertura e a eficiência das estações de tratamento
Por Marcelo de Valécio

Ao longo dos anos, o saneamento básico vem melhorando no país, mas a universalização prevista para 2033 ainda parece longe.

O Novo Marco Legal do Saneamento, instituído por meio da Lei no 14.026/20, deu novo impulso ao setor, estimulando a participação privada e atraindo mais recursos.

Novas tecnologias também estão à disposição ou chegando ao mercado, o que ajuda na ampliação do acesso e na redução dos custos, o principal gargalo do setor.

Em termos de recursos, apesar do aumento de 30% dos investimentos no setor em anos recentes – de 2021 para 2022, saltou de R$ 17,3 bilhões para R$ 22,5 bilhões –, os valores ainda estão muito abaixo do necessário para a universalização.

De acordo com estudo do Instituto Trata Brasil, utilizando dados do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), do Ministério das Cidades, serão necessários investimentos anuais m&eacut


Ao longo dos anos, o saneamento básico vem melhorando no país, mas a universalização prevista para 2033 ainda parece longe.

O Novo Marco Legal do Saneamento, instituído por meio da Lei no 14.026/20, deu novo impulso ao setor, estimulando a participação privada e atraindo mais recursos.

Novas tecnologias também estão à disposição ou chegando ao mercado, o que ajuda na ampliação do acesso e na redução dos custos, o principal gargalo do setor.

Em termos de recursos, apesar do aumento de 30% dos investimentos no setor em anos recentes – de 2021 para 2022, saltou de R$ 17,3 bilhões para R$ 22,5 bilhões –, os valores ainda estão muito abaixo do necessário para a universalização.

De acordo com estudo do Instituto Trata Brasil, utilizando dados do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), do Ministério das Cidades, serão necessários investimentos anuais médios de aproximadamente R$ 44,8 bilhões para se atingir a meta estabelecida pela lei.

Conforme dados do Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 84,2% da população recebe água tratada e 55,8% contam com coleta de esgoto, sendo que pouco mais da metade (51,2%) do que é coletado recebe tratamento.

Isso significa que 24,3% dos brasileiros – o que corresponde a 49 milhões de pessoas – habitam domicílios sem rede coletora de esgoto ou fossa séptica.

Ou seja, os dejetos de quase um quarto da população são despejados em valas e seguem sem qualquer tipo de tratamento para rios, córregos, lagos ou o mar.

Além disso, 1,2 milhão de pessoas vivem em 367 mil lares sem banheiro, nem mesmo externo. Não por acaso, em 2021 o país registrou mais de 191 mil internações causadas por doenças relacionadas à água não tratada, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do IBGE.

“Pelos dados do Censo 2022, três quartos dos brasileiros vivem em domicílios com atendimento considerado adequado”, assinala Paula Pollini, analista de políticas públicas do Instituto Água e Saneamento (IAS).

“Entretanto, o acesso a esse serviço, considerado um direito humano fundamental pela ONU, permanece marcado pela desigualdade que atravessa tantos aspectos socioeconômicos do país, como raça, renda e escolaridade, mas também territoriais, entre as regiões, áreas urbanas e rurais, cidades e periferias, favelas e comunidades urbanas.”

TRAÇÃO

Nesse quadro, o avanço tecnológico desempenha um papel fundamental na rota da universalização.


Avanço tecnológico desempenha um papel fundamental na rota da universalização

Segundo Rafaella Lange, gerente de eficiência operacional da BRK, as concessionárias cada vez mais buscam tecnologias e inteligência de gestão para se manterem competitivas.

“Somente com aplicação de tecnologias relacionadas a gestão, processos e pessoas será possível tracionar a universalização”, afirma a executiva.

Para Alan M. Pinto Mejía, diretor da Elacqua, o Marco do Saneamento colocou metas ambiciosas, prevendo acesso quase completo para toda a população até a metade da próxima década.

“A tecnologia joga um papel importante para cumprir esse objetivo, pois tem a capacidade de reduzir custos, aumentar a cobertura e a eficiência das estações de tratamento”, adiciona.

As opções tecnológicas aplicadas no setor incluem desde monitoramento e gestão do abastecimento e esgotamento via redes e sensores IoT, passando pela gestão de perdas e correção de vazamentos utilizando streaming de dados em conjunto com algoritmos avançados, até o aumento da eficiência no processo de leitura, corte e combate a fraudes e irregularidades via medição inteligente por meio de redes IoT combinadas com modelos de inteligência artificial (IA) e machine learning (ML).


Utilização de IA e big data permite analisar grandes volumes
de dados operacionais e históricos de estações de tratamento

“Além disso, existem diversas soluções inovadoras para execução de obras de expansão de redes e ligações de água e esgoto, como a utilização de métodos não destrutivos, além de novas soluções aplicadas aos processos de tratamento”, salienta Lange.

Atualmente, a utilização de IA e big data também permite analisar grandes volumes de dados operacionais e históricos de estações de tratamento de água e esgoto, identificando padrões e otimizando processos para melhorar a eficiência operacional.

“As ferramentas digitais capacitam os gestores de saneamento a tomar decisões informadas e estratégicas, contribuindo para uma gestão mais eficiente”, acrescenta Vitor Tonzar Chaves, diretor técnico da Almerindas.

“Já a telemetria e os sistemas de monitoramento remoto permitem o acompanhamento em tempo real do desempenho de equipamentos e sistemas de saneamento, possibilitando a detecção precoce de falhas e a implementação de medidas de manutenção preditiva.”

Além disso, acrescenta o executivo, as ferramentas digitais podem ser integradas ao Sistema de Informações Geográficas (GIS) e ao sistema de gestão de ativos.

“Assim, podem ser usadas para monitorar e gerenciar ativos físicos, como tubulações, bombas e válvulas, permitindo uma melhor programação de manutenção, prolongando a vida útil dos equipamentos e reduzindo custos operacionais”, afirma Chaves, destacando que o processo Building Information Modeling (BIM), junto com sistemas de modelagem hidráulica, também vem sendo utilizado para criar gêmeos digitais dos sistemas e, assim, potencializar a gestão de ativos.

Em relação ao processo de tratamento de esgoto, especificamente, Rafaella Lange destaca o uso da tecnologia Nereda, desenvolvida pela Universidade de Delft, na Holanda, e de propriedade da Royal HaskoningDHV.


Na tecnologia Nereda, o tratamento é realizado por meio
de biomassa granulada em um processo automatizado

Com essa tecnologia, o tratamento é realizado por meio de biomassa granulada em um processo automatizado.

O lodo do esgoto é transformado em grânulos que são facilmente decantáveis. Além disso, o sistema é biológico – todo o processo de tratamento é feito sem a adição de produtos químicos.

A técnica promove o tratamento no nível terciário, ou seja, com a remoção de nutrientes (nitrogênio e fósforo).

“Essa tecnologia garante um efluente de maior qualidade, reduzindo o impacto ambiental nos corpos hídricos”, diz ela, lembrando que o sistema consome de 20% a 40% menos energia e utiliza menor espaço físico em comparação às Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) com processos convencionais, como lodo ativado.

“E a área de uma planta Nereda pode ser até quatro vezes menor”, frisa a gerente.

INOVAÇÃO

Em geral, os processos de tratamento de esgoto são biológicos, visto que os microrganismos presentes nos reatores das estações de tratamento degradam a matéria orgânica e convertem o nitrogênio para formas menos tóxicas ou o devolvem para a atmosfera, destaca Chaves, da Almerindas.

“Os tratamentos físico-químicos podem ser utilizados para os efluentes industriais ou a remoção de fósforo, o que pode ser feito biologicamente, mas possui maior complexidade”, esclarece.

Ele lembra ainda que existem diferentes tipos de tratamentos físico-químicos, “como membranas de ultrafiltração e nanofiltração, assim como ozônio, que são mais utilizados em sistemas de tratamento de esgoto que visam o reúso”.

Dentre esses processos, prossegue, destaca-se a possibilidade do reúso do lodo das Estações de Tratamento de Água (ETA) como insumo para a remoção de fósforo no esgoto, graças à alta reatividade de sua superfície, composta por íons de ferro ou alumínio.


Equipamentos e materiais já estão amplamente
disponíveis no Brasil a preço competitivos

Além das técnicas citadas, o setor atualmente também utiliza soluções como coagulação / floculação / sedimentação, sistema MBBR (Moving Bed Bio-Reactor), eletrocoagulação, flotação por ar dissolvido, processos oxidativos avançados, processos de adsorção em carvão ativado e processos de separação por membranas, cada uma delas com vantagens e aplicações específicas.

“Cada um desses processos possui diversas complexidades, havendo ainda outras técnicas como Wetlands construídos e biodigestores”, acentua Chaves. “É importante ainda separar os processos de tratamento de esgoto dos de água, pois seguem lógicas bastante distintas.”

O sistema de coagulação / floculação / sedimentação / filtração é a base para o projeto das ETAs.

“Apesar de haver possibilidades de variação, a depender das características da água bruta, para sistemas com manancial de superfície, ou seja, rios e represas, essa é a principal forma de tratamento”, observa o especialista.

“É necessário monitorar as variações de turbidez da água bruta para que se possa dosar os coagulantes, como o cloreto férrico ou o sulfato de alumínio, de maneira adequada.”

O especialista lembra que o lodo gerado nesse processo é pouco aproveitado no Brasil, apesar de haver experiências e estudos que mostram a possibilidade de reúso.

“Pode-se dizer que nos processos com biomassa aeróbica granular, ao invés de a biomassa encarregada pelo tratamento do esgoto se estruturar em flocos (como em processos convencionais), ela se organiza em grânulos, cuja velocidade de sedimentação é significativamente superior, sem necessidade de adição de produtos químicos e dispensando a instalação de unidades de decantação”, diz.

“Além disso, o processo pode ter alta eficiência na remoção de fósforo e nitrogênio, algo que não é possível em lodos ativados tradicionais.”

Já o MBBR – completa Chaves – utiliza biomídias plásticas com grande área superficial relativa, o que significa maior área útil para a formação do biofilme. “Com isso, é possível obter sistemas com resistência a choques de carga e que ocupam menos espaço”, detalha.


Sistema MBBR utiliza biomídias plásticas com grande área
​​​​​​​superficial relativa, com maior área útil para a formação do biofilme

Por sua vez, as membranas de ultrafiltração e nanofiltração, assim como os processos oxidativos avançados e processos de adsorção (fenômeno físico-químico onde o componente em uma fase gasosa ou líquida é transferido para a superfície de uma fase sólida) em carvão ativado devem ser precedidos por um sistema de tratamento secundário/terciário, sendo complementares aos demais processos para garantir maior eficiência ao processo.

“A escolha da tecnologia depende de diversos fatores, como o tipo de efluente que está sendo tratado (sanitário, industrial, comercial), os contaminantes presentes no efluente, a eficiência que precisa ser atingida, os recursos e a área física disponível para a implantação”, complementa Alexandre Chavita, diretor da Elacqua.

Segundo ele, várias dessas tecnologias não são excludentes e, muitas vezes, são utilizadas em conjunto para se atingir a eficiência necessária.

“As empresas de saneamento projetam estações que consigam atender as necessidades, sabendo que algumas tecnologias são mais caras, outras mais eficientes, algumas mais econômicas, outras ocupam mais espaço”, frisa. “Por esse motivo, se faz necessário um estudo inicial.”

DISPONIBILIDADE

De acordo com Mejía, o reúso de esgoto é fundamental para a sustentabilidade, o equilíbrio hídrico e a minimização de problemas com secas e racionamentos de água, mas seu uso enfrenta uma questão cultural.

“Países que tem que lidar com falta de água durante a maior parte do ano utilizam essas tecnologias há anos, pois são comprovadamente seguras”, aponta. “O Brasil, principalmente em regiões mais secas, deveria apostar na conscientização e uso dessas tecnologias.”

Um fator importante na adoção dessas inovações é que os principais equipamentos e materiais produzidos na China e em outros países já estão amplamente disponíveis no Brasil, a preço competitivos.

“Além disso, o país conta com diversos materiais filtrantes produzidos localmente, assim como bombas e outros equipamentos, também com preços acessíveis”, ressalta Chavita.

“Tudo isso tem feito com que as empresas de saneamento consigam ter acesso a uma ampla gama de possibilidades, permitindo projetar e instalar sistemas de alta eficiência”, sustenta.

Ele ressalta que nem toda inovação precisa ser high-tech, pois as soluções baseadas na natureza e em sistemas descentralizados de tratamento de esgoto também são tecnologias comprovadas, mas “ainda sofrem com o preconceito conservador do sistema.”

“Em abril, finalmente foi publicada a nova norma da ABNT (NBR 17076), que versa sobre os pequenos sistemas de tratamento de esgoto (até 12 mil litros/dia) e incorporou tecnologias como tanques de evapotranspiração, vermifiltros e Wetlands construídos”, informa.

“Essas tecnologias inovadoras e sustentáveis têm um papel ímpar para a promoção do saneamento em áreas rurais e pequenos municípios”, conclui Chaves.


ESGOTAMENTO
Conexões cruzadas sobrecarregam sistemas

Para evitar problemas de conexões cruzadas, as águas residuárias
devem ser conduzidas até a ETE em separado das águas de chuva

Um dos grandes problemas do setor de saneamento são as conexões cruzadas (infiltração e inflow – I&I), em que as águas pluviais são erroneamente conectadas à rede de esgoto, sobrecarregando o sistema e podendo levar a inundações, contaminação ambiental e aumento dos custos de tratamento.

“Esse é um problema muito sério, presente em diversas realidades”, assinala Vitor Chaves, da Almerindas.

“Existem ETEs no Brasil que, quando chove, precisam acionar um ‘by-pass’.”

Para identificar tais problemas, pode-se realizar o monitoramento de pontos críticos do sistema com uso de telemetria e IoT, buscando identificar de onde vêm as principais contribuições de águas pluviais no sistema.

Segundo Chaves, o sistema utilizado no Brasil é o separador absoluto, ou seja, águas residuárias devem ser conduzidas até a ETE em separado das águas de chuva. “Os dois sistemas devem funcionar de forma independente”, ressalta.♦

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