Mesmo com os avanços obtidos após o Marco Legal, sancionado em 2020 pela Lei no 14.026, o saneamento básico no Brasil segue carente de investimentos mais robustos – tanto públicos quanto privados – para cumprir as desafiadoras metas de garantir o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033.
Em entrevista à Revista Grandes Construções, a nova diretora-executiva da Abcon/Sindcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), Christianne Dias Ferreira, comenta as possibilidades e desafios dessa corrida contra o tempo para o saneamento nacional, destacando que assume o cargo com o objetivo de reforçar a importância da entidade, fortalecer o papel dos prestadores privados e promover o diálogo com a sociedade e o poder público, com base em transparência na divulgação d
Mesmo com os avanços obtidos após o Marco Legal, sancionado em 2020 pela Lei no 14.026, o saneamento básico no Brasil segue carente de investimentos mais robustos – tanto públicos quanto privados – para cumprir as desafiadoras metas de garantir o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% com coleta e tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033.
Em entrevista à Revista Grandes Construções, a nova diretora-executiva da Abcon/Sindcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), Christianne Dias Ferreira, comenta as possibilidades e desafios dessa corrida contra o tempo para o saneamento nacional, destacando que assume o cargo com o objetivo de reforçar a importância da entidade, fortalecer o papel dos prestadores privados e promover o diálogo com a sociedade e o poder público, com base em transparência na divulgação de dados e incentivo à eficiência e qualificação dos serviços.
“Levar água e esgoto tratado para a população é uma prioridade nacional e a associação desempenha um papel fundamental nesse processo”, ela acentua.
Com ampla experiência na administração pública, Christianne já foi presidente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) entre 2018 e 2022. Antes disso, exerceu o cargo de subchefe adjunta de infraestrutura da subchefia para assuntos jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, de 2016 a 2018, além de ter sido servidora pública do parlamento brasileiro de 2007 a 2016.
Mestre em Direito e Políticas Públicas e doutoranda em Direito pelo UNICEUB (Centro Universitário de Brasília), a executiva também atuou no setor privado entre 2022 e 2024, como consultora da Vallya Participações.
“O momento é altamente propício para que os operadores privados e públicos possam enfrentar os desafios e finalmente atingirmos a universalização no país”, diz ela. Acompanhe.
• Segundo o Censo 2022, quase um quarto da população (24,3%) ainda não tem acesso adequado ao esgotamento sanitário, enquanto o país despeja 55% do esgoto coletado na natureza. Nesse quadro, quais são os obstáculos para o Brasil avançar na área?
Esses índices permanecem mais ou menos iguais há alguns anos porque o modelo de investimento no saneamento, concentrado principalmente em companhias públicas, ficou estagnado com a crise fiscal. Assim, o saneamento avançou lentamente no país durante a última década. Porém, com o novo Marco Legal, passamos a ver os investimentos deslancharem. Governantes e gestores públicos de todas as esferas passaram a considerar o saneamento como uma prioridade. E a sociedade também passou a se mobilizar para ter acesso a esse direito básico.
• Pode detalhar alguns desses avanços?
Desde a aprovação do Marco Legal, o investimento tem crescido no setor. Em 2022, atingiu R$ 22,5 bilhões, ante R$ 18,3 bilhões no ano anterior. E a expectativa é de que tenha registrado um novo aumento em 2023, indo a R$ 26,8 bilhões em investimentos. No triênio sob as regras da lei (de 2020 a 2022), o investimento médio foi de R$ 19 bilhões, acima do registrado no triênio anterior (de 2017 a 2019), quando o investimento médio foi de R$ 16,7 bilhões. Ainda está longe do ideal para atingir a universalização até 2033, mas já sinaliza um avanço a ser estimulado a partir de leilões e concessões com metas estabelecidas de universalização.
Segundo Christianne Dias, os investimentos em saneamento vinham
estagnados devido à crise fiscal, mas deslancharem sob o Novo Marco
• Por que o esgotamento se encontra em situação ainda mais precária em relação ao tratamento e oferta de água potável?
Diversos fatores influenciaram o maior avanço dos serviços de abastecimento de água no país em comparação ao esgoto. Inicialmente, pode-se considerar a importância da água potável para a qualidade de vida da população, da saúde pública e do desenvolvimento econômico. Além disso, há desafios técnicos, devido à complexidade das infraestruturas e ao avanço de áreas irregulares, bem como aos desafios financeiros, com baixos investimentos. Devem ser considerados ainda os aspectos políticos e institucionais do setor. Mas o momento é altamente propício para que os operadores privados e públicos possam enfrentar esse desafio e finalmente atingirmos a universalização do tratamento de esgoto no país.
• O que é possível ser feito para acelerar esse avanço?
Há recursos e apetite da iniciativa privada em investir. Porém, faltam projetos estruturados para as novas concorrências. Estreitar a parceria entre o público e o privado é o caminho. Ou seja, é preciso fortalecer os instrumentos para universalizar o saneamento, por meio de estímulo à concorrência, consolidação do arcabouço jurídico com normas de referência estabelecidas pela ANA e adoção da regionalização para que todos os municípios sejam atendidos. Esses são os princípios do Marco Legal, que já apresenta resultados significativos como indutor de investimentos para a ampliação e a modernização do sistema em todas as regiões do país. Mas é preciso assegurar que as diretrizes de regulação, concorrência e regionalização sejam observadas, inclusive em seus decretos regulamentadores, como o que estabelece a necessidade de comprovação de capacidade econômico-financeira para as empresas investirem na expansão e manutenção dos serviços.
• Como o novo PAC pode influir nessa tarefa?
Toda junção de esforços é válida para cumprir as metas do Marco Legal. Segundo estudo conjunto da Abcon/Sindcon com a KPMG, a universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário no prazo estabelecido demandaria cerca de R$ 900 bilhões. E tanto a iniciativa privada quando as companhias públicas não são capazes de suprir, isoladamente, essa enorme demanda de recursos. É preciso que os investimentos públicos e privados caminhem juntos, muitas vezes na forma de PPPs, um dos modelos que mais tem avançado com o Marco Legal.
Para a diretora da Abcon, o avanço exige que sejam observadas
diretrizes de regulação, concorrência e regionalização
• Como funciona o sistema de tratamento utilizado no país? E como são definidas as diretrizes para essa infraestrutura?
De forma resumida, o sistema de esgotamento sanitário é constituído por infraestruturas e instalações operacionais necessárias à coleta, ao transporte, ao tratamento e à disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações até sua destinação final. O esgoto gerado é coletado e encaminhado para as estações de tratamento (ETEs) por meio da rede coletora. As ETEs possuem uma série de etapas para o tratamento, sendo que no tratamento secundário ocorre a remoção da matéria orgânica por processos biológicos, que podem ser aeróbios ou anaeróbios. Algumas estações possuem uma etapa final de polimento, para remoção de nutrientes, por exemplo. Diferentes normas devem ser consideradas para a concepção de sistemas de esgotamento sanitário, como as NBRs 9649 (Projeto de redes coletoras de esgoto sanitário), 8160 (Instalações prediais de esgotos sanitários) e 9648 (Estudo de concepção de sistemas de esgoto sanitário).
• Como as novas tecnologias podem contribuir para o aprimoramento do sistema?
A tecnologia é essencial para que as concessionárias de saneamento possam aperfeiçoar os serviços e a própria gestão dos recursos hídricos, ao reduzir as perdas físicas de água nos sistemas, por exemplo. As concessionárias privadas priorizam o investimento em tecnologia e compartilham soluções em diversas áreas, como a geração de energia renovável. Outras possibilidades incluem a disseminação de sistemas circulares de aproveitamento de lodo e demais resíduos, desenvolvimento de ações de incentivo à autogeração de energia, incremento de soluções descentralizadas para áreas isoladas e desenvolvimento de ações de incentivo à mitigação de emissão de gases de efeito estufa, sem prejuízo da universalização.
• Há estudos em andamento sobre as tecnologias específicas para tratamento de esgoto? Quais são os destaques?
As concessionárias de saneamento estão sempre acompanhando os estudos sobre novas tecnologias de esgoto em andamento, que possam ser incorporadas para o aumento das eficiências de tratamento. Esses estudos envolvem as diferentes etapas do tratamento do esgoto sanitário e compreendem processos físicos, químicos e biológicos. Os destaques atuais incluem os processos oxidativos, utilização de membranas, reatores com biofilme, dentre outros, que proporcionam soluções para estações de tratamento compactas, por exemplo.
Tecnologia é essencial para que as concessionárias
possam aperfeiçoar os serviços, reforça a executiva
• Essas tecnologias também abrangem a reciclagem e a reutilização de águas residuais, inclusive para consumo?
O reúso da água já é uma prática consagrada na área industrial, inclusive no Brasil. Por sua vez, o reúso para consumo humano já vem sendo adotado em diferentes países com escassez de recursos hídricos, mas ainda é uma possibilidade remota em nosso país.
• O governo afirma estar “priorizando empreendimentos em regiões com maiores déficits de coleta e tratamento de esgoto”. Como a Abcon avalia esse direcionamento?
O governo acerta ao priorizar essas regiões. Quanto à seleção dessas regiões, trata-se de um critério específico adotado pelo governo sobre o qual não temos como opinar. O que podemos assegurar é que existem déficits em todas as regiões, inclusive nas mais desenvolvidas.
• Alguns especialistas afirmam que o país está na contramão do mundo ao incentivar a privatização dos serviços. Qual é a sua visão sobre essa questão?
Nesse sentido, as comparações pecam por utilizar exemplos de países desenvolvidos, cuja realidade é muito diversa do cenário no Brasil. Não chegamos a oferecer sequer o básico para a população, conforme os números apresentados anteriormente. Defensores dessa suposta tendência de remunicipalização dos serviços públicos de água e esgoto colocam o Brasil em pé de igualdade com a França e outros países que há muito já não possuem carências em saneamento. Ou seja, são casos totalmente distintos da nossa realidade.
Críticas à privatização pecam por comparar
realidades distintas, acentua Christianne Dias
• Como a estruturação do saneamento se distingue nesses países?
Na França, por exemplo, o investimento e a gestão em saneamento contaram por décadas com a participação da iniciativa privada. Somente ao final desses contratos firmados com concessionárias privadas, com os serviços universalizados e os sistemas de abastecimento renovados e modernizados, é que o Poder Público pôde optar por prescindir da parceria privada para assumir a gestão das operações. Lembrando ainda que países com alto índice de desenvolvimento não convivem com a pressão de crescimento demográfico e, dessa forma, podem planejar a manutenção dos sistemas com maior tranquilidade.
• Qual é a sua opinião sobre o tratamento diferenciado do saneamento na reforma tributária?
A regulamentação é uma oportunidade para reconsiderar o saneamento como um setor que merece um tratamento diferenciado no processo de consolidação da reforma tributária. Todos os investimentos em saúde pública precisam ser prioritários e não há impacto maior no bem-estar social do que o retorno que esse investimento direcionado ao saneamento proporciona. Assim, o Congresso tem a chance de trazer o saneamento para a posição de destaque que o setor ocupa no cenário atual e futuro, não apenas para reduzir o déficit social, mas inclusive para que o tratamento de água e esgoto seja valorizado dentro das políticas públicas de prevenção às enchentes e tragédias climáticas, por exemplo, uma vez que saneamento está intrinsicamente ligado à defesa dos recursos naturais.
• Como a Abcon/Sindcon se insere no contexto da universalização?
A Abcon/Sindcon é uma entidade que faculta um melhor ambiente de negócios rumo à universalização. Levar água e esgoto tratado para a população é uma prioridade nacional e a associação desempenha um papel fundamental nesse processo. Para além de todos os impactos positivos na saúde, geração de empregos e preservação do meio ambiente, a entidade busca fortalecer o papel dos prestadores privados promovendo o diálogo com a sociedade e o Poder Público, transparência na divulgação de dados e informações e incentivo a uma prestação mais eficiente e qualificada dos serviços.
Países com alto índice de desenvolvimento não convivem
com a pressão de crescimento demográfico, diz a especialista
• Em termos pessoais, quais são os objetivos à frente da entidade?
Chego com muito entusiasmo à presidência da Abcon/Sindcon. Sempre imputei alto grau de respeitabilidade e legitimidade à associação por promover a interlocução da iniciativa privada com os demais atores sociais, seja por meio da produção de conhecimento técnico como pela representatividade em fóruns de discussão. Espero dar continuidade à essa atuação e agregar valor com a produção de subsídios que possam balizar a tomada de decisão em todas as esferas em prol de um país mais justo.♦
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